Como pode uma criança de 5 anos ser vítima de Bullying de outra criança com 5 anos? | Testemunho

menina de vestido colorido em fundo negro

A Luísa sofria de Bullying

“A minha filha tem um amor tão grande pela Luísa que nem imagina, é uma loucura!”. 

Estávamos em outubro de 2014 na Festa de Aniversário da Luísa, a minha filha.

E de facto eu não imaginava…

Só soube que a partir daquela frase, que me soou terrivelmente mal, apesar de aparentemente positiva, algo de anormal se estaria a passar.

Mas a revelação só chegou no final desse ano letivo em maio/junho de 2015.

Considero-me uma mãe atenta e penso que o fui, caso contrário, tudo teria chegado a um ponto onde provavelmente ninguém conseguiria dar uma reviravolta. Com a experiência que passarei a descrever tudo mudou na minha vida, sobretudo a minha atenção, que já sendo elevada, passou a ser super focada e as emoções tornaram-se muito controladas, não é fácil “tirar-me” uma lágrima, sobretudo junto da escola ou colegas da minha filha Luísa.

A Luísa atingiu o “limite do copo” em maio/junho de 2015, altura em que chegava todos os dias a casa a chorar por causa de uma amiga, a mesma que tinha “uma paixão assolapada”. No início nada contava, apenas chorava, pedia colo e quando a tempestade acalmava, apesar dos nossos pedidos para que nos contasse o que se tinha passado, saía do colo e ia brincar sozinha. Desejei tanto ter uma segunda filha faladora…

Ao fim de uma semana, a Luísa disse-me que não queria ir mais para a escola.

Na altura não falamos com o educador, tentamos resolver as “coisas” em casa, embora não tivéssemos total consciência do que se estaria a passar, achávamos que de facto a menina a perseguia porque gostava muito da Luísa.

Até que a Luísa em junho volta a repetir que está farta de aturar a Ana, que já não a aguenta, que não consegue brincar com ninguém porque a Ana não a deixa, e que não vai mais às atividades na escola.

E o facto é que tivemos que a retirar das atividades, pedir aos avós para ficarem com ela, e falar com o educador aproveitando a época de entrega de avaliações.

Nessa reunião de avaliação explicamos ao educador o que a Luísa tinha dito sobre a Ana, o qual admitiu que de facto a Ana era bastante maçadora e que ele próprio não entendia como a Luísa a aguentava. Mas não valorizou, considerou que, sendo o final de ano, todos estariam um pouco fartos/cansados. Não estando eu presente dentro da sala, ou no recreio, acabei por aceitar a explicação, sendo que pedi para que no início do ano letivo houvesse alguma atenção para se perceber o que se passava, porque a Luísa sempre tinha demonstrado gostar muito da escola e para dizer que não queria ir mais é porque alguma coisa relevante se passaria.

As férias connosco, com a irmã, com a família e amigos deram para quebrar rotinas, e isso para a Luísa é o suficiente, aparentemente, para vermos uma menina nova e feliz!

Em setembro lá voltaram as rotinas. Mas, ao fim de poucos dias, voltou o choro e agora também o medo de ser castigada, o fazer chichi na cama, dizer que não queria comer (algo que sempre gostou muito) e a enorme tristeza quando um dia chegou a casa e disse que a Ana também estava na sua turma na escola de ballet. Estranhei muito esta entrada já fora do tempo de inscrições, após as aulas já terem iniciado e, sobretudo, numa turma que já estava completa. Foi em conversa com uma colega e amiga de trabalho, com quem partilhei estas descrições, que saiu a palavra que me gelou durante dias: “Raquel, tens que ponderar uma hipótese, a Luísa está a ser vítima de bullying”.

As questões surgiram-me em catadupa:

Como pode uma criança de 5 anos ser vítima de bullying de outra criança com 5 anos?

Como a faço sair desta situação?

Com quem falo?

Como a faço falar?

PRECISO DE AJUDA.

Foram as questões que quase me puseram a cabeça à roda que me fizeram ir até à Clínica da Mente, depois de pedir que me recomendassem alguém que me conseguisse ajudar neste tipo de casos. Eu precisava de alguém que me ajudasse a chegar à Luísa, porque, mesmo sendo mãe, não conseguia arranjar estratégias para conseguir pôr a Luísa em movimento, em conversa e chegar a conclusões sobre qual deveria ser a sua forma de agir.

Ao longo do mês de novembro li tudo o que podia sobre o assunto, falei várias vezes com o educador, que sempre pôs de parte esta hipótese. Até ao dia 17 de dezembro em que a Luísa chega a casa mais uma vez a chorar e volta a dizer que não vai mais à escola.

Dei o “grito” mais alto que pude. Uma vez que era praticamente ignorada pelo educador, enviei um e-mail nessa mesma noite ao educador e aos pais da Ana dizendo que colocava um ponto final na relação das duas meninas e expliquei o que a Luísa estava a passar há quase meio ano e que exigia que a escola tomasse medidas em relação ao caso, uma vez que tinham essa obrigação enquanto instituição de ensino.

Pedi uma reunião de urgência com a diretora de forma a colocá-la a par de tudo o que se tinha passado e marquei a primeira consulta da Luísa.

No dia 7 de janeiro, estava eu e a Luísa sentadas no sofá a aguardar pela Dra. Marta Calado para fazermos a consulta de diagnóstico.

Foi o dia mais desgastante que tive. A Luísa teve que falar, algo que nunca gostou de fazer, sobretudo se o assunto fosse a Ana, chorou várias vezes e pôs-me a mim a chorar também. Eu tive que explicar aquilo que a Luísa muitas vezes não contava, explicar como o educador estava a reagir, e explicar que a mãe da Ana tinha decidido por a menina na mesma turma de ballet em que a Luísa estava, sendo que eu sabia que tinha sido uma exigência da mesma, informação que me tinha sido dada, entretanto, por uma colaboradora da escola de dança.

Na conversa que se conseguiu ter com a Luísa houve uma frase dela que me fez perceber logo o porquê de ela não reagir perante a Ana. A certa altura, a Dra. Marta diz-lhe: “Luísa, se a Ana berra contigo, também devias berrar com ela, não achas?”. A Luísa fica muito espantada a olhar para a Dra. Marta e diz-lhe: “mas isso é muito feio, não se faz!”. A Dra. Marta olha para mim e diz-me: “muitos parabéns, tem uma filha muito bem-educada!”. Nunca um elogio me pesou tanto. Eu não a eduquei para isto. As lágrimas caíram-me sem parar. Como era possível que aos 5 anos alguém tivesse interiorizado tanto…

Foram duas horas de total exaustão. E, essa noite para mim foi de lágrimas constantes.

Saímos da Clínica com um plano de consultas feito, assim como com uma série de “trabalhos de casa” para fazer: uns para por a Luísa a falar, outros para que a Luísa percebesse que quem está e vive com ela faz asneiras e não vive ou viveu com medo disso. Aliás, eu fui quase sempre o oposto da Luísa enquanto criança. Amiga dos meus amigos, mas um terror para quem me fizesse mal ou fizesse mal a um dos meus. E foi o meu próprio caso que serviu de exemplo. Foi muito importante ouvir a minha mãe a contar às netas as asneiras/defesas que eu tinha tido enquanto criança. Eu própria me questionei como teria sido possível eu ter passado sem ter um “belíssimo” castigo!

O grande passo seguinte era que a escola mantivesse a Luísa afastada da Ana em todas as situações: dentro de sala, nas atividades, no recreio, etc… Entretanto a Dra. Marta procuraria nas sessões de terapia reforçar a autoestima da Luísa, a sua capacidade de responder, o perder o medo de responder, o perder o medo de ser castigada.

Após as primeiras sessões junto da Dra. Marta Calado, era necessária a colaboração do educador, das auxiliares, da direção, dos adultos da escola. Esse passo foi o mais difícil de conseguir. O afastamento do recreio foi várias vezes ignorado e, por isso, a Luísa teve várias recaídas que foram observadas pelos adultos, incluindo o educador, mas foram deliberadamente ignoradas. O que nos obrigou a retomar a sessões de terapia em abril, após as férias da páscoa.

A negação desta situação por parte da escola foi enorme, o evitar confrontar os outros pais com uma situação que necessitava de ser acompanhada devidamente, sob pena de, no futuro, haver resultados mais penalizadores para a Ana do que propriamente para a Luísa, o perceber perfeitamente que o ideal é não fazer nada; fingir que nada existe, até porque do outro lado estava uma família com influência e consideráveis possibilidades financeiras; o responder a reuniões pedidas por mim para procurar acertar estratégias sobretudo em relação à Luísa, uma vez que em relação à Ana pareciam ter decidido ignorar, mesmo reconhecendo que havia algum desleixo e desinteresse por parte dos pais; o “hipócrita” bater nas costas; e, acima de tudo, o procurarem virar a responsabilidade da situação da Luísa para a própria Luísa e para nós, enquanto pais. O ilibarem-se constantemente das suas responsabilidades. Nunca nos esqueceremos destes momentos. Assim como nunca nos esqueceremos de olhar bem dentro dos olhos daqueles que “fingiram” estar preocupados para que nós não levantássemos muita poeira.

Para o ano, a Luísa lá continuará e nós também, já sem a presença da Ana. Atentos como águias e sem qualquer dificuldade de apontar o dedo ou levantar a voz. Porque ao longo de todo este processo uma coisa aprendemos: quem sempre luta pelo melhor dos seus tem direito de exigir aquilo a que uma escola é obrigada a corresponder por lei – o respeito pela dignidade e individualidade do aluno.

Não se calem. Oiçam os vossos filhos e procurem quem os compreenda também e ajude.

São as memórias de infância que marcam o percurso de vida de um adulto feliz.

Testemunho gentilmente escrito pela mãe da Luísa (nome fictício).